domingo, 24 de março de 2024

São José do Calçado

A Ivny Matos


Olhar esse invisível,

nomear esse inominável 

explicar esse inexplicável

é o nosso mais inútil trabalho.


O movimento nos mantém estáticos, 

em êxtase de tudo e nada,

à espera e à procura

do grande silêncio que nos fala.








domingo, 17 de março de 2024

Silvério Pontes e Marcelo Caldi - onde os ventos se encontram

Tradição adiante

Texto de Fernando Gasparini, publicado na introdução do livro de partituras "Onde os ventos se encontram", de autoria de Silvério Pontes e Marcelo Caldi (Editora Numa, 2021).

 

Repentina, a vida é um sopro. O ar que atravessou o trompete de Silvério Pontes é o mesmo que penetra o fole da sanfona de Marcelo Caldi. É o vento, invisível, a moldar a tessitura dos sons e dos encontros.

 

Silvério Pontes tocou durante 30 anos com o parceiro e ídolo Zé da Velha, referência obrigatória no trombone brasileiro. “A gente adorava estar cercado de músicos jovens, e aquele menino Marcelo Caldi era um deles, e chamou minha atenção, pela sua formação clássica, pela versatilidade de estilos que tocava no acordeom”, conta o trompetista.

 

Marcelo, por sua vez, ainda se lembra da emoção de ter subido pela primeira vez no palco ao lado da dupla Zé da Velha e Silvério Pontes, em 2011, na sede do Bola Preta, na Lapa, Rio de Janeiro. “O Zé da Velha tocou com o Pixinguinha, o Silvério tocou com o Zé e hoje sou eu quem toco com o Silvério. Imagina o que isso representa pra mim? Me traz o conforto de estar no caminho que escolhi, da linhagem musical que quero e preciso seguir”, resume.

 

O sanfoneiro fez parte do último registro de Zé da Velha e Silvério Pontes, o CD “Ouro e prata” (Lua Nova), de 2015. Em princípio, Caldi faria um “acordeom guia”, isto é, uma referência que não entraria na gravação, e serviria apenas para orientar o mestre Dominguinhos, o ilustre convidado do álbum, a colocar o instrumento de fole no choro “Músicos e poetas”, de Sivuca.

 

Era um momento especial, pois seria uma das últimas gravações de Dominguinhos, que estava em um estado delicado de saúde, vindo a falecer meses depois. O álbum “Ouro e prata” marca ainda 50 anos de carreira de Zé da Velha, que, logo após alguns anos, deixaria de fazer shows.

 

Aconteceu que Dominguinhos ouviu e apreciou demais a guia de Caldi. O mestre teria comentado a Silvério: “eu gostei muito desse acordeom, quem é esse garoto? Não apaga o acordeom dele, não, eu toquei aqui de um jeito que dá pra gente fazer junto”. Assim, a faixa ganhou duas sanfonas, a de Marcelo e a de Dominguinhos.

 

Silvério ligou para Marcelo e contou a novidade. Ambos choraram ao telefone. Dois chorões. Descobriram, ali, uma afinidade baseada não apenas numa admiração mútua, mas, sim, numa emoção, isto é: um desejo de seguir adiante numa mesma tradição que os atravessou, advinda dos séculos passados. 

 

Os ventos sopram, e foi num show do Baile do Almeidinha, comandado por Hamilton de Holanda, que Silvério e Marcelo se reencontraram e começaram a trocar ideias sobre composição. A partir daí, selaram uma parceria prolífica, em aproximadamente 50 músicas, até agora. Dessas, selecionaram 10 para gravação, aqui apresentadas. 

 

“Quando o Zé parou de tocar, apareceu o Marcelinho em minha vida, o que me revigorou como compositor”, afirma Silvério.

 

Já Marcelo se encanta com a vasta vivência do trompetista. “Ao pesquisar mais sobre a vida de Silvério, descobri um músico super eclético: tocou pop e reggae com o Cidade Negra, tocou na Banda Vitória Régia junto de Tim Maia, tocou muito choro e samba com Luiz Melodia, além da longa passagem pelas gafieiras...”, conta.

 

As composições da dupla integram o universo do choro brasileiro. Conforme Marcelo Caldi, “são músicas cantaroláveis, como são as melodias de choro do início do século XX. É uma clara inspiração nos grandes mestres”.

 

“A música boa tem de ter essa renovação na composição”, destaca Silvério, enfatizando o papel didático desta publicação, e a importância do material chegar aos jovens músicos no país.  

 

As peças do livro são uma ponte entre as gerações do choro, considerando a diferença de 20 anos de idade entre Silvério e Marcelo. Músicos experimentados em diversos estilos, é no berço do choro que a musicalidade de ambos aparece de modo mais autêntico, e se expande.

 

Fazendo soprar os ares da tradição, a dupla não poderia deixar de homenagear grandes compositores. A celebração está em “Ao mestre Cartola”, um samba-choro que alude às melodias sinuosas, características do mestre do samba; em “Dia de Domingos”, uma espécie de “xote chorado” em reverência a Dominguinhos; e em “Meneziana”, para o mestre da gafieira Zé Menezes, com quem a dupla teve oportunidade de tocar junto, em ocasiões distintas. 

 

Destaque ainda a “Valsa para mamãe”, dedicada à mãe de Silvério, Lila Léa, e à mãe de Marcelo, Estela Caldi, inspirada nas antigas valsas de Chiquinha Gonzaga. “Viemos de famílias musicais, e nossas mamães são nossas heroínas”, diz Silvério.

 

O álbum abre ainda espaço para o bolero (“Bom dia com um bolero”), o maxixe (“Maxixe da bailarina”, “Quando o sapo pula”), o frevo (“Frevo de Ibitipoca”), a polca (“Polca polaquinha”), e, claro, o choro (“Casa do choro”, homenagem à abertura da escola na Rua da Carioca).  

 

Do compilado deste livro, saltam melodias claras e alegres, solares e dançantes, repletas de raro encanto, singeleza e frescor para os dias de hoje. A contribuição deste material talvez seja levar novos ares à linguagem contemporânea do choro, recolhidos lá do final do século XIX, quando as matrizes da música brasileira ganharam forma e começaram a soprar nos ouvidos de nossa gente. 


Ouça em https://open.spotify.com/intl-pt/album/3w28xjaD4HM2we5XEXcu9N