quinta-feira, 23 de outubro de 2008

ESTAMOS VIVOS?!




I


O que é leptospirose? A participante do programa de TV terá de acertar dentre três opções: um jogo de cartas, uma doença ou um tipo de dinossauro. O apresentador estimula a ansiedade e o nervosismo. Se ela errar, será fatal: os pais dela serão atirados numa banheira de água fria.

As cenas banais da televisão são descritas no livro Mortos Vivos, de Andréia Delmaschio, de forma a revelar o seu aspecto ridículo e infame. Os relatos levam o leitor a interpretar os programas televisivos por meio de uma outra temporalidade: a da leitura.

A descrição é sintética. À primeira vista, insinua-se até um certo desleixo no trato com a linguagem e com a forma. Engano. A barbaridade da coisa assistida pela TV se revela na rudeza com a qual os eventos são contados. Por outro lado, a escritora chama atenção para pequenos detalhes, já imperceptíveis aos espectadores acostumados a horas e horas diante do fluxo contínuo da telinha.

Por exemplo, a cabeça sempre baixa de Janiscleide, a paraibana que por ser muito feia foi abandonada pelo marido. Passada por uma “transformação” estética, Janiscleide foi à televisão ralhar contra o companheiro – e de sobra ser instrumento de propaganda da invencionice milagreira da indústria estética, anunciante do programa.

“O cabelo foi tingido e os cachos crespos se renderam à chapa quente, mas a doméstica paraibana que o marido rejeita continua sempre ali, sob a derme, os cabelos e as roupas de uma atriz global” – é um trecho do conto.

A narrativa seca requer estômago para digeri-la. A capa do livro é um aviso: uma gravura da série “Hemorragias”, de Maurício Salgueiro. Na montagem, um sangue escorre como um corte profundo na pele. Mortos Vivos provoca o surgimento de uma literatura atenta às imagens midiáticas que recriam a violência e a miséria humanas.

É aconselhado a quem deseja escapar das armadilhas de certos pastores evangélicos, pois mostra em detalhes os procedimentos adotados para convencer os fiéis a pagarem o dízimo, o ato mais importante para a igreja.

Diferentemente de outros países em que a TV se apresentou a uma sociedade já previamente letrada, no Brasil o veículo se tornou o principal e quase único meio de informação e entretenimento para uma população sem acesso à leitura. É de longe o instrumento de comunicação mais influente do Brasil, penetrando homogeneamente a sociedade em vários segmentos nas diversas camadas sociais em todas as localidades.

Daí a necessidade de se criar novas formas de “assistir” à telinha. Em termos didáticos, alfabetizar o espectador quanto ao funcionamento dos espetáculos encenados diariamente na residência de milhares de brasileiros – os princípios e motivações. A literatura aparece aí como instância de diálogo e confronto, abrindo percepções críticas – urgentes e necessárias.


II


O livro suscita angústia quanto à condução do destino da humanidade nos primeiros anos do milênio. É uma tentativa de despertar consciência acerca das crueldades cotidianas, que insistem em permanecer invisíveis.

As imagens narradas saltam da televisão e passeiam por paisagens oníricas – em que pedaços de gente são comercializados no mercado ambulante – e chegam às radiografias médicas. Estas revelam o espetáculo da “evolução científica” e detectam, com precisão, a verdade nua e crua dos fatos:

“Eu assistia à exibição das imagens em três dimensões. A enfermeira me ofereceu pipocas. (...) Era terrível seguir com os olhos a doença evoluindo fora de mim, em imagens cercadas de efeitos especiais, o que tornava a sensação ainda mais dolorosa.” A reação apática dos médicos e da enfermeira também não escapa à observação da personagem.

Mortos Vivos traz ainda relatos dos pedintes de ônibus: “é duro ver um filho com fome e não poder fazer nada”. Uma frase ouvida todos os dias por passageiros das médias e grandes cidades do país. Aqui é destacada – como um grito, um desabafo, num texto sem pretensões estéticas nem vanguardísticas. Apenas um contar, como quem conversa com um colega.

Sobre o que afinal há de se escrever? Fazer arte para tornar a realidade social menos insuportável? Será? Tais questões estão latentes no mosaico de espelhos reversos de Andréia Delmaschio, em que se refletem unívocos a dor e o humor, a crueldade e o divertimento, a indignação e o comodismo, a realidade e a ficção, a vida e a morte.

Os paradoxos são o instrumento para fugir do senso comum e oferecer uma compreensão aguçada dos dias de hoje – principalmente no seu traço escatológico e apocalíptico. A partir desse aspecto, o livro inaugural de “ficções” da autora traduz a sua dimensão existencial. Desastres de avião, tsunamis, o enterro da avó na roça – “a pessoa mais viva nos arredores”: o ser humano diante da morte. E a morte em plena vida.

“Se você não me matar, você me mata!”. A citação de Maurice Blanchot é uma dentre tantas de vários autores que abrem os micro-textos. São chaves de leitura, e permitem entrever as vivências literárias da escritora, por quais caminhos o ali exposto passou até se consumar em texto.

A própria questão da autoria – quem é o dono da palavra? – é uma tensão em Mortos Vivos. Com doutorado em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Andréia Delmaschio abordou o tema em sua tese, tendo como base o livro Budapeste, de Chico Buarque.
E encontra subitamente com o autor, o objeto da pesquisa, em suas viagens semanais ao Rio. O resultado está narrado no primeiro conto de Mortos Vivos, intitulado “Ludo Real”. Vale à pena conferir.



Para obter o livro, entrar em contato com este blogger.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

ADEUS A JULINHO DO ACORDEON



Sim, os jornais não noticiaram.


Afinal, já há bastante tempo Julinho do Acordeon tornara-se um ilustre desconhecido. O reconhecimento de sua arte, nos últimos anos, se mantinha restrito ao grupo de amigos e amantes da sanfona.


Cearense de nascimento, Julinho experimentou o sucesso entre as décadas de 50 a 80. Rodou o mundo com sua sanfona característica, em forma de "máquina de escrever", e esteve ao lado de grandes nomes da música brasileira, como João do Vale - um dos maiores parceiros e incentivadores, Clara Nunes, Chinoca, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Carmélia Alves e Sivuca, entre muitos outros.


Quem o via andando devagar pelas ruas de Copacabana, onde morava sozinho num apartamento na Barata Ribeiro, jamais imaginaria o manancial musical daquele homem, caído no ostracismo e falecido em 10 de outubro de 2008, no alto de seus 87 anos.


Mesmo com a saúde debilitada, Julinho planejava gravar mais um disco. Ou seja, deve existir muitas partituras inéditas, além de fotos e discos, a serem descobertos - um acervo importantíssimo para a memória da cultura brasileira.


Uma das últimas apresentações do sanfoneiro - senão a última - foi realizada na praça Afonso Pena, na Tijuca, em maio deste ano, num encontro de sanfoneiros promovido pelo SESC Rio. O registro está na foto acima. Haja vida e vigor para empunhar uma sanfona!


Sob uma brisa fria, protegido por um guarda-chuva e para uma platéia de pouco mais de dez pessoas, Julinho tocou uma bela canção francesa, relembrando os bons tempos em Paris. Os espectadores presentes, que resistiram à intempérie da noite, sabiam que estavam diante de um momento especial. E agora com sabor de saudade.


terça-feira, 21 de outubro de 2008

PALMAS PARA O PÚBLICO


O domingo amanhecera nublado e chuvoso. Ótima opção para passar o dia em casa, entre filmes e pipocas. Porém, para as senhoras Luíza e Maria, moradoras de Engenho de Dentro, a sugestão de lazer foi outra. Abandonaram a preguiça e chegaram pontualmente ao show em homenagem a Sivuca, realizado no SESC Tijuca, no fim da tarde.


"Aonde estiver tocando Sivuca a gente vai", sentenciou dona Luíza, nordestina de nascimento. A apresenção do Quinteto Sivuca, grupo dedicado à obra do mestre da sanfona, lotou a Casa Rosa e empolgou uma platéia de mais de 200 pessoas, formada em sua maioria por pessoas da terceira idade, público cativo do SESC. Alguns desavisados vieram para ver Sivuca no palco. E ficaram chocados ao saber do falecimento do sanfoneiro, ocorrido em dezembro de 2006.


Em sua sétima apresentação, o Quinteto Sivuca mais uma vez provou que há uma enorme demanda de público para a realização de homenagens ao mestre da sanfona, cujo legado musical ainda carece ser explorado. O maestro permanece vivo nos corações dos fãs, que estão espalhados por todo o Brasil. E também mundo afora.


A versatilidade da obra de Sivuca parece ter relação direta com a versatilidade de seu público. O Quinteto Sivuca emocionou os recifenses na Festa de São João 2008, na capital pernambucana, tocando em praça pública para uma população jovem e amante da boemia. Já no SESC Tijuca, o mesmo grupo apresentou-se em uma sala de música, para um público radicalmente distinto.


O resultado?! Aplausos de pé (foto acima)!


E até o próximo show!

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

HOMENAGEM A SIVUCA NO SESC TIJUCA

Da esq. p/ dir.: Paula Faour, Edu Krieger, Kiko Horta, Guga Mendonça
e Fábio Luna formam o grupo que irá se apresentar próximo domingo



Uma excelente opção grátis de música brasileira é o show do Quinteto Sivuca, que será realizado no próximo domingo, 19-10, às 17h, no SESC Tijuca, Rua Barão de Mesquita, 539. O repertório do grupo é dedicado à música do mestre da sanfona, incluindo os sucessos "Feira de Mangaio", "João e Maria", "Adeus, Maria Fulô", entre outros.

Aliás, o SESC Tijuca tem sido míster em iniciativas de resgate da memória da cultura brasileira. Um exemplo disso é o Sanfonada 2008, realizado em maio e que reuniu diversas atrações em prol do resgate da sanfona, até visitas em escolas para demonstração do uso do instrumento.

O show do Quinteto Sivuca também terá uma homenagem ao nosso querido Julinho, grande acordeonista, falecido semana passada. Os amigos sanfoneiros subirão ao palco para tocar uma "Asa Branca", canção ícone da sanfona e do povo nordestino.

Imperdível!!!

O evento será fotografado por Mônica Torres e pintado - isso mesmo, o evento será pintado - pelo premiado artista plástico Gian Paolo Doth.

Vale à pena conferir!!!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

PRA COMEÇAR - UM POEMA

Pintura: Gian Paolo Doth




Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.
Desconfiem do mais trivial, na aparência singelo,
Examinem o que parece habitual
Suplicamos expressamente: não aceitem
O que é de hábito como
Coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta
De humanidade desumanizada
Nada deve parecer natural
Nada deve parecer impossível de mudar.


(Brecht)




Arte: Gian Paolo Doth