sábado, 15 de agosto de 2009

Poesia, sim


Poesia, sim

Procura, sim

entre ilhas de sentimentos,

coágulos de passado,

memória, feridas, memória,

aonde este rio nasce?

em que terra entranhou-se

estranhando a minha face?

eu, justo eu, o seu ninho,

o único abrigo

a frágil nau no vasto oceano.



Poesia, sim

Procura, sim

Eis aqui o barro que um dia sonhou ser gente.

A nascente escondida na mata,

em que buraco estará enfiada?

Pois nem que eu assassine todas as metáforas

irei banhar-me nu nesta fonte

a água que está além da palavra

e a estes versos me conduz.

Como um Cristo

- terrivelmente feliz

na cruz.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Obra de Sivuca é doada ao Instituto Moreira Salles

O Instituto Moreira Salles (IMS) vai abrigar e disponibilizar ao público o acervo musical de um dos artistas mais importantes do século XX, no Brasil e no mundo: Sivuca, o mestre da sanfona.
O material será encaminhado à Reserva Técnica Musical do Instituto, no Rio de Janeiro, o mais importante complexo do gênero dedicado à preservação e divulgação da memória da música brasileira no país. O acervo de Sivuca será disponibilizado na internet, no sítio http://www.ims.com.br, para consulta dos amantes da música, fãs, músicos, pesquisadores e público em geral.
A doação será feita pela filha única de Sivuca, a socióloga Flavia de Oliveira Barreto. A cerimônia de doação está marcada para o próximo dia 18/08, terça-feira, às 19h, no auditório do IMS, rua Marquês de São Vicente, 476 – ocasião em que será feita uma palestra multimídia sobre a vida e obra do músico.
São, ao todo, 100 discos, dentre eles 65 autorais e outros 35 em que Sivuca participa como diretor musical, arranjador, compositor e/ou instrumentista – de forma a revelar a versatilidade do músico. As informações referentes à ficha técnica também serão disponibilizadas na web.
Para Flavia, o objetivo dessa ação é criar meios democráticos de acesso a um material até então disperso e desorganizado. Segundo ela, boa parte dos discos se encontra aleatoriamente na internet, só que, em muitos casos, estão incompletos e com informações equivocadas. O trabalho do ArteSivuca, prossegue a socióloga, foi exatamente organizar, sistematizar e digitalizar. Além de vasculhar sebos e institutos de memória no Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife, João Pessoa, Fortaleza e Natal, entre outros.
“É o trabalho de pesquisa que será doado, pois parte considerável do conteúdo já existe espalhado na internet”, reitera a socióloga. “Como as pessoas podem saber mais sobre Sivuca, se quase toda a sua obra está fora de catálogo?”, questiona. Embora consagrado mundialmente por reinventar a sanfona, levando-a a estilos inusitados como o jazz e a sinfônica, um estudante de música hoje teria dificuldade de encontrar Sivuca numa loja de discos.
A doação visa apresentar à nova geração a dimensão da grandiosidade de Sivuca. Outras entidades no Rio de Janeiro já receberam o material, como Conservatório Brasileiro de Música, Escola Portátil de Música e Instituto Cultural Ricardo Cravo Albin.


Sobre a Palestra


A palestra multimídia “Sivuca – Música e História” é um passeio musical pela vida e obra de Sivuca. Vai apresentar os resultados da pesquisa empreendida por Flavia desde 2001, destacando algumas raridades, entre fotos, vídeos e gravações musicais. É uma espécie de roteiro para consulta ao acervo do artista, destacando os discos e músicas mais interessantes.

Imperdível para os fãs de Sivuca e também para os amantes de sanfona. Pois a trajetória do mestre revela a versatilidade e grandiosidade do instrumento, não só para a cultura brasileira, mas para a música do século XX. No encontro, a música será apresentada diante de uma abordagem de seus contextos históricos, o que permite uma visão ampla das condições que permitem o nascimento de um gênio como Sivuca.
Multi-instrumentista, compositor, arranjador, orquestrador, regente, maestro e cantor, é como sanfoneiro que o artista alcançou o sucesso no Brasil e no mundo. E não é por menos: pelas mãos de Sivuca, a sanfona passeou por estilos até então estranhos ao instrumento, como a bossa nova, o jazz e a música erudita.
O legado de Sivuca abriu caminhos para se criar uma verdadeira escola de sanfona no Brasil e no mundo. Ao levar a sanfona para a música clássica e criar arranjos e orquestrações sobre temas gonzagueanos, Sivuca revelou a universalidade da música nordestina, fazendo de canções populares do povo sertanejo a inspiração para uma obra erudita sem precedentes. A palestra já foi apresentada no I Festival Internacional da Sanfona (BA e PE), no Festival de Inverno do SESC e no Sanfonada – Encontro de Sanfoneiros no Rio de Janeiro, entre outros.


Apresentadores


Flavia de Oliveira Barreto – socióloga, pesquisadora, pós-doutora em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), filha única de Sivuca, idealizadora e coordenadora do Projeto Sivuca.

Fernando Gasparini – jornalista, pesquisador, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador do Projeto Sivuca.

Sobre o Projeto Sivuca

www.sivuca.net

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O elo erótico-sagrado entre Jesus Cristo e Maria

Jesus Cristo ladeado por Maria e São João evangelista
Giovanni Bellini, Pietà, 1460

O encontro de Jesus Cristo com Maria é a união do filho com a mãe e, ao mesmo tempo, do marido com a esposa. Édipo enfim realizado: essa é a síntese do pensamento místico cristão, versada por vates ao longo da história – uma interpretação inspirada nos sagrados evangelhos.

A união sexual entre filho e mãe é um dos maiores tabus sobre o qual se fundamenta a atual civilização. É, no mínimo, instigante perceber que os mitos / arquétipos “realizam”, no campo dos deuses, aquilo que é extremamente proibido no campo dos homens, algo indigno sequer de ser citado.

O encontro amoroso de Cristo e Maria assume um sentido claramente erótico nas exaltações poéticas dos místicos cristãos, dentre os quais São João da Cruz. Autor de extremas delicadezas, deixava escapar os vestígios do corpo no encontro divinal arrebatador – do qual os versos são o sussurro que induz / conduz / seduz / enfeitiça o leitor a deleitar-se no colo de Deus – em harmonia com o salmo 84:2, um dos preferidos do poeta: “meu coração e minha carne gozaram no Deus vivo”.

Na Espanha católica-conservadora do século XVI, o poeta erigiu versos que adentram bravamente este novo milênio. Sua força poética superou os moralismos daquele tempo e até hoje desafia os ditames da igreja que o assimilou – a mesma que o perseguiu e o encarcerou.

Muitos padres e hermeneutas de São João da Cruz tendem a sublimar a identidade entre o místico e o erótico revelada em seus versos. Como bem apontado pela tradutora Dora Ferreira da Silva, “a tradição ortodoxa sempre preferiu uma aproximação mais intelectual ou mesmo escolástica das verdades últimas do cristianismo”.

Nessa abstração racionalista, que permeou milênios na humanidade, a vivência do amor humano se reduziria a uma função biológico-reprodutora, expulsando os deuses de nosso jardim das delícias. A poesia mística, ao contrário, aponta para o encontro do divino dentro de si – o corpo como a taça onde os anjos bebem o vinho.

Para São João da Cruz, Deus é o mais profundo centro de nossa alma – acessada somente pelas mediações da carne. Cristo, nesse sentido, é a transformação do homem em Deus e vice-versa. Maria, mãe e esposa, é o elemento feminino que rege / recebe / concebe a tenebrosa união – um casamento que se efetiva dentro de cada um de nós.

A poesia, com o sabor de síntese e encanto, reduz o exposto acima a um mero intróito / pretexto para anunciar os versos que seguem abaixo, de autoria do santo espanhol:


Do nascimento

9

Já que era chegado o tempo
em que Ele nascer devia
assim como desposado
de seu tálamo saía
abraçado a sua esposa
que em seus braços a trazia
ao qual a graciosa mãe
num presépio deporia
entre doces animais
que ali no momento havia;
dos homens eram cantares
dos anjos a melodia
festejando os esponsais
que entre aqueles dois havia
mas Deus naquele presépio
só chorava e só gemia
e eram jóias o que a esposa
ao casamento trazia
e a mãe olhava espantada
a troca que ali se via
o pranto do homem em Deus
e no homem a alegria
coisas que num e no outro
tão diverso se cumpria.

Tradução de Dora Ferreira da Silva. Este poema, bem como as aspas citadas acima, estão em “A Poesia Mística de San Juan de La Cruz”. Edição bilíngue, São Paulo: Cultrix, 1984. A versão original em espanhol é um sabor a mais. Vejamos:

Del Nacimiento

9
Ya que era llegado el tiempo
en que de nacer avia
assí como desposado
de su tálamo salía,
abraçado con su esposa
que en sus braços la traýa
al qual la graciosa madre
en un pesebre ponía
entre unos animales
que a la sazón allí avía
los hombres dezían cantares
los ángeles melodía
festejando el desposorio
que entre tales dos avía
pero Dios en el pesebre
allí llorava y gimía
que eran joyas que la esposa
al desposorio traýa
y la madre estava en pasmo
de que tal trueque veýa
el llanto del hombre em Dios
y en el hombre el alegría
lo qual del uno y del outro
tan ajeno ser solía.