terça-feira, 28 de julho de 2009

Apontamentos sobre a "Terra sem Mal"


Jaguarete (William Berger) e Sinhozinho (Allan Moscon).
Foto: Ricardo Aguiar

Não é um bom espetáculo, se fôssemos avaliar pelos comentários apressados do público presente à estréia de “Terra sem Mal – um Mistério Bufante e Deleitoso”, em maio deste ano, no Centro Cultural Majestic, em Vitória (ES). A peça nem sequer poderia ser chamada de arte cênica:


“Isso não é teatro! Isso pode ser qualquer coisa, menos teatro!”, argumentaram alguns espectadores, durante o debate promovido após a apresentação – um bate-papo em que o público poderia dizer o que quisesse a respeito da peça.


O incômodo resultara não somente da aparente precariedade do cenário e da iluminação, montados a base de lanternas, velas coloridas, um projetor de slides e até um pisca-pisca natalino. Nem também do desempenho amadorístico dos atores e da trilha sonora inspirada em festas raves, mixando desde a Pantera Cor de Rosa a Uma Odisséia no Espaço.


O que mais chocou e confundiu a platéia foi, sem sombra de dúvida, a entrada em cena do autor, diretor e idealizador de “Terra sem Mal”, o poeta pra lá de polêmico Waldo Motta – que lançou no palco algumas poesias inéditas de um livro ainda não publicado. Além de recitar alguns poemas, o artista interfere diretamente na cena a qualquer momento, chegando a corrigir os atores, caso algo saia fora de seus planos.


Em sua segunda apresentação, ocorrida em junho, no Mercado São Sebastião, também em Vitória, o poeta, antes de declamar um poema, abaixou-se para corrigir o posicionamento dos pés dos atores William Berger e Allan Moscon, a fim de achar uma simetria visual entre ambos. Alguém na platéia sussurrou: “isso está no script?”. “Terra sem Mal” é um franco desafio aos espectadores que supervalorizam o preciosismo formal / estético no palco.


Outro aspecto chocante são as caras e bocas de Waldo Motta, ao assistir, de dentro da coxia improvisada, o desempenho dos atores. Se alguém não lhe agrada, o poeta não esconde o descontentamento, balança a cabeça em negativo, e, de vez em quando, urge umas críticas a quem estiver próximo. Da mesma forma, vibra com os pontos altos, gargalha e sai a circular entre a platéia.


A apresentação no Mercado São Sebastião revelou um aspecto fundamental no trabalho do poeta: o rompimento da quarta parede, o abandono do palco para o encontro direto com o público. É com essa liberdade que o ator William Berger – sem dúvida, o destaque da peça – encena o poema “Assim disse a Monstra”, enquanto agarra um espectador, declamando: “Eu sou a monstra sagrada / eu sou a bicha papona / eu sou a jaguatirica / dos vales / eu sou a suçuarana / dos montes” – num clima ousado, sério, e ao mesmo tempo festivo, brincante, carnavalesco.


O público no Mercado São Sebastião estava disperso nos bares e lojas ali instalados, para estimular a vitalização do histórico lugar, em Jucutuquara. Nesse contexto, o poeta inicia a peça. De súbito, um mero espaço de passagem virou, por meio da intervenção artística, um lugar de confluência, em torno do falar poético.


Embora soe inconsútil, e baseada no improviso, ao modo de um ensaio aberto ou happening, a peça é fruto de dezenas de ensaios, sendo que cada entoação dos versos e movimentação no palco foram meticulosamente pensadas por Motta. O espetáculo “Terra sem Mal” surgiu a partir de uma oficina ministrada pelo poeta na Escola de Teatro e Dança Fafi, em Vitória, 2006, de Poesia e Teatro.


A partir daí, fundou-se o grupo Poeisis, e, após vários ensaios com atores amadores e profissionais ao longo de 2007, foi só no fim de 2008 que se formou o grupo que hoje forma a peça. “Terra sem Mal” é dividida em três atos, semelhante aos autos medievais e ao teatro sacramental – Gil Vicente, Anchieta, Calderón de La Barca, entre outros – em que homens, deuses e demônios assumem a fala. São, ao todo, 24 poemas, que não sofreram nenhuma adaptação ao saltarem do papel para o palco.


No primeiro ato, os atores interpretam / vivenciam os buscadores do paraíso perdido, alegorizam uma condição arquetípica do homem – o ser atônito no universo à procura de si, na esperança de encontrar a chave que liquide a angústia e o fardo da existência, e restaure uma condição intuída como primordial pelas várias religiões: a superação da morte – a conquista da terra sem mal, lugar de abundância, alegria e paz.


O título da peça é uma alusão ao mito indígena brasileiro da terra sagrada, correspondente ao éden hebreu, ao nirvana budista, ao samadhi indiano. “Terra sem Mal” é uma interpretação / hermenêutica poética de Waldo Motta acerca dos símbolos / arquétipos / metáforas das religiões dos índios.


Seminus, com shorts de lycra apertadíssimos a cobrir os despudores do corpo, William Berger, Allan Moscon e Cristina Garcia se enfileiram e formam uma árvore antropomórfica e lançam gemidos, uivos de desespero, os três estáticos, a mover somente as mãos-folhas.


Logo mais à frente, Waldo – com voz rangente, de vitalidade invejável – comunica um verso, à primeira mão, incompreensível:


Ein Traum aber auch Wirklichkeit.


Em seguida, os autores respondem ao código, traduzindo-o em uníssono:


Um sonho, mas também realidade.


Aqui se oferece uma senha para penetrar o espetáculo. Entre o cognoscível e o mistério, o sonho de Waldo Motta é também uma realidade: duas esferas opostas amorosamente, e em desespero, se cruzam, mostram ao espectador a magia que está por vir, inscrita no real. Essa é uma vertente do teatro sacramental, que enfatiza o caráter alegórico / simbólico da existência – os seres humanos como personagens de um jogo entre os deuses.


Fortemente ligado à tradição cristã-católica, o teatro sacramental – um dos primeiros a chegar no Brasil, como instrumento de catequese – é revivido em “Terra sem Mal”, no tocante à visão de um mundo como palco de atuação e lugar da presença do divino. Diferentemente dos autos medievais, no entanto, a peça é uma vivência dos mitos indígenas, ou seja, não-cristãos. “Catequizamos Anchieta”, brinca o poeta.


A alegoria do homem em busca da sonhada terra é sintetizada no poema abaixo, declamado por William Berger, com chapéu de capitão do mar (detalhe: cheio de plumas) e sotaque do português navegante e aventureiro:


Mar de tanto sangue e fel,

mar amaro, mar cruel,

onde hemos de encontrar

a terra de leite e mel?



Aos poucos, o enlace poético evidencia uma inversão metafórica, isto é, as projeções exteriores de um lugar sagrado são redirecionadas, conforme uma tradição mística, ao corpo humano, este sim o lugar paradisíaco, ao qual se deseja – conscientemente ou não – conquistar.


No prelúdio que antecede o segundo ato, Waldo Motta – nunca como ator, ele insiste, mas como ele mesmo – assume novamente a cena, e começa a falar sobre o mito da divindade Jurupari, o messias dos índios, elo entre céu e terra, cujo significado é: boca fechada. O poeta explica que o sagrado, em sua etimologia, tem a ver com segredo, separado, silenciado. E afirma: “eu sou Jurupari, mas decidir abrir a boca”. E verte ao público um longo poema, que considera a espinha dorsal do mais recente trabalho:


Boca interditada

por leis e editais

boca lacrada

por lacres morais

boca selada

por falar demais

boca atarraxada

por conveniências

já não serei mais.

(...)


Jurupari desembesta

a falar a coisa a loisa

o treco o trem

o troço a joça

e berra

e ruge

e estruge

o cujo

o nome feio

o nome sujo

a palavrinha

o palavrão


Alguém na platéia indaga: “mas que maluquice é essa, hein?!”. Outros, tomados de susto, aplaudem, enquanto alguns saem de perto. As crianças riem. Qualquer coisa menos incólume, Jurupari é a expressão da verdade máxima descoberta por Waldo Motta: a de que o cu é, universalmente, o lugar da redenção de todos os homens e mulheres, independentemente de cor, credo, geração, classe social ou sexualidade, o lugar da transformação do ser humano em deus. Daí o trabalho poético banhar-se nas fundas águas da religião, no sentido do latim, religare, religar o homem ao divino, ou então, ligar pela ré, pelas costas.


Por mais absurdo que pareça, esse é o fundamento-síntese sobre o qual se alimenta toda a construção artística e a verborragia do poeta, sua hermenêutica dos textos sagrados e esotéricos – sua antropofagia os(v)aldiana.


No segundo os atores personificam os deuses das crenças indígenas, como Tupã e Trovão. Eles enfim revelam a verdade aos homens. Se alguém imagina os deuses como cheios de pompa, solenidade, eufemismos e distanciamentos, aqui eles se revelam satíricos, bufões, burlescos, gozando da condição humana.


Os atores retomam a cena como índios, mais uma vez seminus, e gritando sons guturais, com tambores e chucalhos: uh uh – ah ah – uh uh – ah ah. Sons que estimulam as zonas baixas do corpo. Tupã é invocado e o deus Trovão, finalmente, responde, na voz de Cristina Garcia:


Ó meu caro Kwaí,

solitária é a jornada,

e não há aonde ir.

A Terra Sem Mal que buscas,

o paraíso que sonhas

sempre esteve em ti mesmo,

está em tuas entranhas.


(...)


Chovam graças em toró

sobre quem ame o loló.


Nesse momento, os índios descobrem que a terra sem mal é a alegoria de nosso ânus. Assim, a peça passa a assumir um ar mais bichesco, um aspecto travesti / travestido / transformista – o tom viadesco é crescente. A sonhada terra, depois de milênios de busca, está ao alcance das mãos. O terceiro e mais longo ato é dividido em duas partes – a primeira é a dança da anunciação, e a segunda os perigos de se tocar na sonhada terra, protegida por demônios e bestas sagradas.


Inicia-se o momento mais erótico e sensual do espetáculo, quando Allan e William se abraçam, agarrados um atrás do outro e alegorizam corporalmente o casamento místico indígena entre o irmão sol e o irmão lua. “Salve, par assinalado / que por Deus suspira e geme”, anuncia Cristina. A irmandade entre os símbolos é efetivada a partir da junção erótica.


Na opinião de Waldo Motta, o mistério da verdade se desnuda a partir do momento em que começamos a nos despir – de roupas e de preconceitos. Por isso, a ênfase na sensualidade. A exposição do corpo, longe de ser pornográfica, assume um caráter lúdico / de brincadeira.


O casamento místico é fruto de uma batalha em que se deve enfrentar os monstros interiores, os medos e fobias frente a uma nova realidade, criada a partir do sonho. A monstra é personificada por William, ao som da Pantera Cor de Rosa, balançando um enorme rabo, e cheio de plumas e penas. E declama ser “o tigre de Blake e de Borges, / e a pantera de Dante, e o leopardo / de Eliot e Daniel, / e o dragão do Jardim das Hespérides / e a besta do Apocalipse / a serpente do paraíso. / Sou o próprio chupacabra”. A platéia gargalha.


Novamente, em outro poema, Jaguarete, o feroz animal, cede aos anseios do príncipe, do bofe, personificado por Allan: “Vem, pastor tão desejado, / visitar nosso curral; / vem logo, ó doce amado, / anjo do amor divinal”. William faz insinuações pra lá de provocativas a Allan, pega no seu falo, e os dois saem a correr pela platéia, como a festejar o místico-erótico encontro.


Ponto importante: a peça não acaba no momento em que termina, pois o que ela oferece é uma chave de leitura para a existência humana, portanto há de se ruminar durante bastante tempo as provocações ali contidas.


Em sua obra, Waldo Motta considera que “a teatralidade é, com efeito, um elemento predominante”. Para o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, os poemas de Motta são um “breviário de teatro”.


Se a meta de uma certa poesia escrita, como esta, é comunicar-se com o amplo público, na poesia falada ela encontra a extensão vocal, física, exterior (gestos, sons e imagens) para sensibilizar / chocar / provocar; e direcionar tal impacto para uma possível reflexão interior, de ordem religiosa / filosófica / metafísica. Esse talvez seja o principal anelo entre Artaud e Motta, comparação apontada por José Celso. “Terra sem Mal” é um claro exemplo, uma experimentação do teatro da crueldade, principalmente quanto ao seu aspecto ritualístico / espiritual. Em outros termos, o que se opera em cena é uma cerimônia demiúrgica / alquímica / mística / catártica / religiosa, em que deuses e demônios são acionados pela mediação da palavra, uma convocatória ao prazer e ao êxtase, o deleite do homem ao lidar com as divindades, sendo o corpo teatral uma metáfora para o jogo simbólico que identifica o ser humano como o receptáculo / taça onde anjos e exus bebem o vinho. Conforme o teatro da crueldade: reverter os papéis entre palco e platéia, uni-los.

Assim, o poeta se justifica: “não quero posar de dramaturgo, esse é um espetáculo-tese, um experimento sociológico, ao modo de Brecht, em que pretendo confirmar minhas assertivas místicas e espirituais. Com essa peça, eu prego uma peça no mundo artístico”.


Nesse aspecto, a entrada em cena do poeta, suas intervenções, a sensação de ensaio aberto (work in progress), são estratégias para evidenciar o teatro dentro do teatro – o metateatro – e evocar o teatro que a vida é, num caráter também didático e de dimensões políticas, dentro da linha brechtiana.


No teatro alegórico, os acontecimentos da história se sucedem num teatro de farsas e tragédias – cada ser humano tem uma dimensão simbólica, decodificada segundo conhecimentos de numerologia, astrologia, cabala, tarô, mitologias, etimologia, interpretação dos sonhos etc. Trata-se de uma visão em que “os seres e coisas são metáforas, símbolos e representações de outras realidades”.


Finalmente, concebemos a identidade entre o ato espiritual e o ato artístico. Ambos operam no terreno da imaginação, em direção à ação no real, e a partir dele – uma interação elementar. A linguagem artística é o meio da comunicação espiritual. O ato espiritual em si é também artístico, pois é uma descoberta poética.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Fragmentos de um Hospital

I

Pintura: Gian Paolo Doth

À primeira vista, imaginei que já estivesse morto – pela forma como os enfermeiros, ágeis e firmes, pegaram na maca, retirando da ambulância o senhor bem velho e alto, a pele bege, fria e flácida, o corpo cheio de fios e coberto por uma capa verde clara, de certa transparência; e, próximo à barriga, uma máquina com vários botões, que aparentou ser bem pesada, formato retangular, à espessura e tamanho de um livro grosso, antigo, de capa preta.


Uma das enfermeiras cobriu com a capa verde um pedacinho da barriga que aparecia ao vento, noite fria, e, alguns segundos depois, os olhos do homem, fechados como os de um defunto, se abriram, claros, castanhos, reais.

Uma gota despontou na clara água, a lágrima escorreu na dor da face, e os enfermeiros.... os enfermeiros sorriram, brincaram: - tá chorando meu amor, tudo está bem, tudo vai ficar bem; o velho homem era uma criança, e o seu rosto levemente amenizou. E ele sorriu.



II


Pintura: Gian Paolo Doth


Era a única bebê no atendimento da emergência, entre quase uma centena de adultos a tossir e a assistir a novela, fechados dentro de uma enorme sala branca, sem quadros ou flores, com ar-condicionado ligado, e uma parede de espelhos a cobrir uma das laterais, de forma que todos poderiam ver a si mesmos.

Um pouco magrinha sim, mas com os olhinhos grandes, estendia os bracinhos e mãozinhas para pegar no cartão do plano de saúde, este segurado firme pela mãe, com a bebê no colo e os olhos atentos às informações constantes naquele estranho objeto.

Após checar os dados algumas repetidas vezes, a mãe enfim levantou a cabeça e olhou séria para frente, como a esperar, como a vaguear num pálido transtorno. O cartão do plano permanecia firme em suas mãos – gesto estático – como se estivesse pronto para ser visto e revisto a qualquer momento, lá estava ele, quase ao alcance das mãozinhas da bebê, cada vez mais instigada em descobrir a coisa.

A mãe abaixa a cabeça em direção a da filha, mexe um carinho em seus cabelos e, olhos fechados, murmura qualquer coisa de indescritível. A criança, a todo tempo em silêncio, agora mexia os bracinhos e perninhas para agarrar o cartão. Um dos dedinhos chegou a tocá-lo.

É quando a mãe se volta para conversar com alguém, ao mesmo tempo em que, instantaneamente, esconde o brinquedo na bolsa. De súbito, a bebê levantou a cabeça e olhou séria para frente, como a esperar, como a vaguear num pálido transtorno.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Guitarra e Sanfona - Um Encontro Pulsante

Marcelo Caldi (sanfona) e Guga Mendonça (guitarra). Foto: Sérgio Bondioni
Profundamente ligada ao ambiente sertanejo das várias regiões do Brasil, a sanfona tornou-se um ícone da chamada cultura popular brasileira, e ninguém pode imaginar um forró, um xote ou um baião sem a nobre presença do instrumento, acompanhado pelos agudos do triângulo e os graves da zabumba. Foi com essa formação que o rei do baião, Luiz Gonzaga, se apresentou pela primeira vez com sucesso na Rádio Nacional, Rio de Janeiro, nos idos dos anos 40.

De lá pra cá, a sanfona se metamorfoseou, seguindo o fluxo das dinâmicas históricas e culturais das décadas consecutivas. Foi, inclusive, colocada no ostracismo e identificada com um país agrário e oligarca, contraponto ao país moderno, urbano e industrializado que se pretendia construir, no fim dos anos 50. Ressuscitada pela Tropicália, que reposicionou Gonzagão num novo cenário, a sanfona começa a dialogar mais abertamente com outros estilos musicais.
Nesse contexto, destaca-se a importância de Sivuca para a ampliação dos caminhos da sanfona. De acordo com Ricardo Cravo Albin, "o músico é responsável por elevar a sanfona a uma categoria universal, inserindo-a no contexto do jazz e da música sinfônica".

Seguindo os passos do mestre, o Quinteto Sivuca, formado por músicos que acompanharam o artista nos últimos anos, surge no cenário da música instrumental com a tarefa de promover uma união dentro da enorme diversidade de sons que marcam a brasilidade. A marca mais salutar do repertório da banda é exatamente essa: a diversidade - forró, baião, frevo, samba, choro, balada, jazz e até inspirações sinfônicas. E por que não uma pitada de rock n' roll?!
Guga Mendonça. Foto: Sérgio Bondioni
Ao romper com várias tradições e revelar de forma veemente e inequívoca um traço marcante da música no século XX - a pulsação, que muitas vezes abandona o universo tonal para se banhar em grunhidos modais - o rock n' roll encontrou na guitarra elétrica um de seus maiores símbolos.
A geração de Sivuca, o albino paraibano que nasceu em 1930, talvez tivesse alguma dificuldade em assimilar os novos sons, mas, para quem nasceu na década de 70 em diante, a distorção da guitarra soa familiar, a ponto de ter sido incorporada à música popular brasileira em suas variadas facetas. Curiosamente, é a mesma Tropicália que começa a distorcer os timbres do instrumento, e não sem alguma resistência de outros setores da música, que chegaram inclusive a promover passeatas contra a guitarra elétrica.

Se o forró e o rock, à primeira vista, soam como gêneros distintos, devido às suas origem e evolução, percebemos em ambos o traço comum da pulsação: música feita para dançar, empolgar, extravasar. Não é à toa que o maior roqueiro do Brasil, Raul Seixas, é nordestino e bebeu nas águas de Elvis e Gonzaga para produzir sua obra.

Poderá o timbre da sanfona harmonizar-se com as distorções pulsantes da guitarra?! Se uma imagem vale mais do que muitas palavras, convido o leitor a assistir ao vídeo abaixo e tirar suas próprias conclusões.


Filmagem e Edição: Maurício Leal
É o show do Quinteto Sivuca, realizado recentemente no auditório do BNDES, Rio de Janeiro. A música é o forró Nilopolitano, homenagem de Dominguinhos à cidade de Nilópolis, onde morou por vários anos. Trata-se de uma peça virtuosística, de difícil execução, para deixar muito sanfoneiro de cabelo em pé, dada à forte pulsação e às melodias intrincadas. Destaque para os talentos do sanfoneiro Marcelo Caldi e do guitarrista Guga Mendonça, rompendo fronteiras para alcançar os mais diversos públicos e, ao modo de Sivuca, revelar a universalidade da música.
O Quinteto Sivuca é formado também pelo legendário baixista Jorjão Carvalho, Cacá Colon certeiro e preciso na bateria, e a personalidade marcante de Paula Faour nos teclados. Os três são um assunto à parte. Se alguém imagina que eles estão na cozinha, já habitam a sala de estar há muito tempo.

Quinteto Sivuca. Foto: Sérgio Bondioni