sábado, 8 de maio de 2010

Da compaixão e outros babados

"A dor de todos os oprimidos dói em mim."

A isso poderia se dar o nome de compaixão. Certa ocasião, um amigo, poeta inclusive, me perguntou como ele poderia fazer piadas ou comentários acerca dos gays sem ser ofensivo. Alguns veados politicamente corretos podem achar a pergunta, em si, uma ofensa. Mas percebi naquele tom uma curiosidade, e até uma certa ingenuidade. Afinal, com esse papo de homofobia, a gente fica receoso de falar qualquer coisa, ele argumentou.

Pois é muito simples, respondi. É só usar a criatividade, um traço peculiar de quem se apresenta como artista. Imagine: e se eu fosse gay, gostaria que as pessoas se referissem a mim de qual maneira? E se eu fosse um índio? Ou um burakumin? Ou um estrangeiro? Ou uma mulher? E se eu fosse, de fato, um filho da puta? Ou qualquer outra coisa?

A compaixão requer, portanto, uma certa habilidade artística, aliada a um desprendimento do “eu”, da nossa personalidade, a fim de se projetar e “ser” o manancial de marginalizados do mundo. Por ser gay, eu, particularmente, tendo a me sentir bastante à vontade, e até feliz, junto aos oprimidos e sofredores de toda ordem. Porque, para tal ordem vigente – incrivelmente vigente – eu sou um perdido, um “perdedor”. Ótimo! Jamais gostaria de estar no lugar daqueles que me “venceram” (parafraseando Darcy Ribeiro).

Mas, vejamos bem, o sentir-se oprimido, por si só, não convoca o sentimento da compaixão. Todos os seres humanos, em maior ou menor grau, são oprimidos, inclusive os opressores são oprimidos pelos desejos demoníacos de segregação e humilhação.

O diferencial, para mim, está na consciência do processo da opressão. Um leão, diante da presa, não se compadece dela. Não pensa “ai, coitadinha, ela tem filhos para criar”. Abocanha-a e pronto. Vermes também não sentem compaixão. Há de se alcançar uma certa nobreza para despertar tais tipos de sentimento, que em muito se aparenta a um dom, uma vocação, um exercício.

Quanto a mim, não quero assassinar os opressores – tal como a burrice histórica dos comunistas – nem muito menos ter piedade, ou auto-piedade (tanto pior!), dos oprimidos. Eu quero é libertar o mundo da opressão. Mas como? Primeiramente passando ao largo do mar de mentiras e enganações que fundam os valores e a moralidade do atual sistema de dominação. Mentiras, aliás, que são as mesmas, apregoadas durante milênios, desde o início desta humanidade. E já passou da hora de meter o dedo na ferida.

***


A primeira vez em que estive no exterior foi numa cidade chamada Reading, a meia hora de Londres. De imediato, chamou à atenção o nome do lugar, que naturalmente me remeteu a “leitura”, embora não haja uma associação direta, por parte dos ingleses, entre o município “Reading” e o termo “reading”.

Outro dado importante foi o número da casa onde me hospedei, 42, que numerologicamente reduz a 6 (4+2), o número da deusa Vênus, que rege o meu signo (Libra) e o ano atual em que vivemos. Depois, logo fui saber a fama de Reading. Ali se situa a prisão onde Oscar Wilde foi encarcerado e humilhado, acusado do “crime” de ser homossexual, no final do século XIX.


Oscar Wilde

Ora bolas, uma pobre bicha latino-americana, com uma queda para a poesia, atravessa o atlântico para dar de cara com uma cidade chamada “leitura”, onde foi preso um dos escritores europeus mais importantes dos últimos séculos, justamente por ser veado. Consta ainda que em Reading foi enforcada a última bruxa da Inglaterra. Segundos antes da morte, ela teria amaldiçoado o lugar.

Distante dos dados biográficos, de Oscar Wilde eu guardava, até então, a sensação de suas histórias, quase fábulas. Particularmente uma, em que um homem, por ser tão amigo e bonzinho para os vizinhos, tanto se sacrificou em prol dos outros que morreu na neve sem a ajuda de ninguém. Não obteve nada em troca de sua benevolência.

De repente, me saltou dessa memória, por detrás das letras, a carne viva do autor, do ser que empunhou a pena e a vida em prol daquelas palavras. Na cadeia, Wilde escreveu longas cartas para o amado que o denunciou. Diante desse cenário, de galhos secos e ventos frios, num inverno negativo, impensável à maioria dos brasileiros, foi impossível não ter sentido compaixão por aquele escritor, libriano como eu, do mesmo decanato (ele do dia 16 e eu do dia 19 de outubro).

Quero dizer, a compaixão nos aproxima. E por mais diferentes que cada um de nós sejamos, a compaixão liberta a mente para buscar as semelhanças, os traços em comum – por mais invisibilizados que eles sejam.

Nem faz tanto tempo assim o episódio ocorrido com Wilde em Reading. Casos desse tipo, infelizmente, são a marca da história da nossa civilização. A prática homoerótica é condenada por todas as grandes religiões institucionalizadas, do ocidente ao oriente. Desde o início dos tempos, o gay foi visualizado como algo subversivo, e anulado, silenciado dos discursos dos governantes, dos exércitos, das ciências e também das artes. Como se fosse uma coisa que não existisse ou, quando muito, uma sombra, algo que, quando praticado, deve, necessariamente, ser escondido. Nem me venham falar que na Grécia Antiga era diferente, que lá as bibas eram as donas do pedaço. Basta ler as primeiras páginas da história da sexualidade, de Foucault, para saber que, mesmo lá, onde muita gente acha que foi um paraíso “homo”, a prática gay foi cercada de regras, de condutas, em que as mulheres, inclusive, não tinham o direito de participar da orgia geral. E, por favor, não me digam que nesta ou naquela tribo do México ou da África os homossexuais eram vistos como semi-deuses, pois mesmo aí, nessa sagração, há também uma segregação, uma separação do convívio dos comuns. Como se fosse algo da ordem do extraordinário, e distante, portanto, do cotidiano dessas populações.

Somente na década de 70 a Organização Mundial de Saúde anunciou que dar o cu não é doença. No Brasil, apenas em 2004 o Conselho Federal de Psicologia proibiu os terapeutas de tratarem as bichas como doentes. Todos sabemos a carga pejorativa incluída nos termos veado, bicha, boiola, baitola, mona, traveco, queima-rosca etc. e etc. Veja bem que ironia: a sociedade que gerou a miséria atual em que vivemos é a mesma que busca, através do escárnio, denegrir a prática gay.
Pois eu transformo todas essas ofensas num grave elogio, aliás, numa solenidade, e, diante dos moralismos que sustentam a miséria social e espiritual em que vivemos, com muita honra, pompas e plumas róseas eu declaro que sou veado, bicha, boiola, baitola, mona, traveco, queima-rosca etc. e etc.
Qualquer sexólogo, psicólogo, psicanalista, qualquer pessoa que se dedique a observar, estudar e experimentar os labirintos da sexualidade humana, qualquer um com um mínimo de sensatez pode concluir que os termos “homossexual”, “heterossexual” e “bissexual” são insuficientes e inadequados para dar conta da diversidade e amplitude do erótico-humano. E que o impulso “homo” está presente, em maior ou menor grau, em cada um de nós. Se não o liberamos, muitas vezes é por mera conveniência e apego às tradições moralistas, que estão provocando nada menos que nosso auto-genocídio.

Agora, imaginemos, por um segundo, o tamanho dessa repressão em nível global – geográfico e histórico. Imaginemos mais, exercitemos nossa criatividade, imaginemos qual seria o tamanho físico, tridimensional, dessa repressão? Seria gigantesca, certamente. E se a repressão tomasse uma forma? Qual seria? Possivelmente, a de um monstro demoníaco, assustador, um dragão com milhares de cabeças, a cuspir fogo contra qualquer desejo proibido.

A essa altura do campeonato, não guardo a menor dúvida de que todo esse pânico, essa aversão ao homoerótico é o ingrediente base, constituinte e gerador do processo civilizacional. Justamente porque, para a prática bichesca, é quase que imprescindível a experiência prazerosa com o cu. Hã? É isso mesmo! E não se trata de uma waldomottice. Qualquer bruxo ou iniciado em magia sexual sabe perfeitamente que o cu é o lugar de mais intenso prazer do corpo e onde os desejos podem se tornar materialidade. Além de ser o ponto zero da acupuntura, o chacra base kundalínico para o yoga, o ponto de geração do feto para a embriologia, e tantas outras coisas. Não é à toa que o ânus é simbolicamente identificado ao número 4, justamente aquele que representa a materialização, a concretude de nossos anseios. O que pensar dos versos do profeta Isaías, que afirma que a justiça é o cinto dos nossos lombos? Está lá no capítulo 11. E o que pensar da visão divina de Ezequiel, que viu uma pedra de safira (ligada à Vênus e, portanto, ao princípio feminino) entre os quadris de Deus? Está lá no capítulo 1. É só conferir, minha gente. Nada do que eu falo é invenção minha, nem de Waldo Motta, a verdade está aí, a olhos nus, atrás de nós, querendo nos abocanhar.

O diferencial de Waldo Motta consiste em, tal como o seu personagem Jurupari, botar a boca no trombone. E de ter sido o primeiro na história (que eu conheço) a dizer com todas as letras o que está interdito, sublimado, subentendido nos textos basilares das civilizações, como se fosse uma impulsão inconsciente, que o ser humano, por mais que a reprima, não consegue negá-la, e a afirma, mesmo negando-a. Qualquer um que se dedicar, com o mínimo de honestidade, a tirar a prova, por si mesmo, dos pressupostos waldomottaneanos, mergulhará num poço fundo de símbolos ancestrais, dados científicos, físicos e matemáticos, livros de arte e de poesia que estão por aí espalhados em sebos e bancas de jornais.

Nosso tempo permitiu aos mais lúcidos a singularidade de tomar conhecimento de como se operam os valores e as ações nas mais variadas culturas em distintos tempos. Isto é, diferentemente de outras épocas, nós gozamos atualmente de uma riqueza de detalhes acerca dos outros povos, suas semelhanças e distinções. Diante de uma banca de jornal, é possível encontrar o livro dos mortos dos egípcios, o manual de teosofia de Blavatsky, o Tao de Lao-Tse, os poemas de Rumi, a bíblia cristã, o alcorão para crianças, o I Ching, um guia de yoga, os princípios do Tai-Chi, a antologia de Jorge Luis Borges, a epopéia de Gilgamesh, os versos de Mário Faustino e Elliot. O que todos eles têm em comum? O cu. É só conferir – que o buraco é mais embaixo. E, aliás, todos nós temos um, não é? Embora seja um elemento erótico, o cu não nos difere, não nos secciona, não nos sexualiza, não nos distingue, tal como o pênis e a vagina. Conforme a máxima de Waldo, “pelas costas somos todos iguais”.


Existem ainda, é claro, aqueles bossais, entre médicos e biólogos, que defendem ardorosamente que o cu só foi feito pra cagar. Eu presenciei uma professora de Biologia dizer, em alto e bom som, para uma sala de 40 alunos da Escola Técnica Federal, que ela, como bióloga e cientista, tinha pleno conhecimento e autoridade para afirmar que o ânus é inadequado para penetração. Imagine quantas vezes tamanha blasfêmia foi pronunciada ao longo da história. Eu reputo isso como a maior mentira pregada pelos doutores e donos desse mundo miserável. Quem me consola é Jesus Cristo, ao afirmar que Deus roubou a sabedoria dos “sábios” e preferiu entregá-la aos simples de coração. Porque um doutor dizer tamanha atrocidade dessa... Doutor de quê? Doutor de merda! Aliás, merda aqui já virou elogio.

A sociedade colocou o cu no mais baixo calão de nossa linguagem. Quantas vezes o vai tomar no cu foi pronunciado como estopim de brigas e encrenquas das brabas. No Rio de Janeiro, quando o vai tomar no cu é dito sério, prenuncia coisas gravíssimas. Ouvi isso às oito horas da manhã, num engarrafamento da Nossa Senhora de Copacabana, numa potência vocal invejável, dito por um motoqueiro negro a um motorista branco de carro. Este último, que até então também esbravejava, se calou.

Por sua vez, quando é anedótico, o vai tomar no cu é a brincadeira predileta no repertório dos homens de conduta sexual normativa. Porque aí, mesmo aí, no tom da piada, o cu permanece como ofensa, tão difamatório que chega a ser ridículo, risível. Nesses jogos heterossexistas, jamais um homem se permitiria assumir que gosta de dar o rabo, a não ser como imitação grotesca dos trejeitos dos boiolas, oportunidade para, mesmo mascarado, dar uma soltada dos códigos machistas – que realmente devem enfadar qualquer cristão.

O próprio código permite essa relativa distensão, afinal não dá pra ser macho a toda hora. Vista por esse viés, a desmunhecada legitima a negação do homoerótico, de forma irônica, sarcástica, pois nega uma experiência ao afirmá-la. Ao mesmo tempo cria uma brecha, uma deixa para a entrada do veado no assunto da roda. E quantas bichas espertas se aproveitaram de uma piada homofóbica para emendá-la numa cantada, e, com alguma sorte, cair numa trepada.

Proibido e escarnecido, o cu – avesso a dicionários e à boa literatura – permanece atrás de todos nós, para todo o sempre. É o elemento de unidade, de cumplicidade, de compaixão. É a chama viva do amor de Deus.

Numa situação de perigo, todos ficam com o cu na mão. Li o depoimento de um brasileiro que presenciou o recente terremoto no Chile e ele afirmou que, naquele momento de tremores, a sua maior vontade foi a de abraçar as pessoas e dizer: eu te amo! Será que vamos precisar de tremores continentais para aprendermos a amar uns aos outros? Quando é que vamos respeitar os outros pelo simples fato de eles serem quem eles são? Seja um burakumin ou um veado, todos nós somos carentes de respeito e de amor. Tudo o que fazemos é porque queremos ser amados. Não dá mais pra gastar esforços retóricos pra dizer e experimentar aquilo que é o mais simples e habita em cada um de nós: a vontade despudorada de amarmos uns aos outros.