quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A Festa Musical de Marcelo Caldi

Foto: Sérgio Bondioni

Marcada pela fusão inusitada de estilos, formas e tendências, a obra de Marcelo Caldi expressa um sentimento de liberdade e ousadia, e aponta para quais serão os caminhos do fazer musical no início do século XXI. Ao romper as fronteiras do erudito com o popular, aproximar o tango argentino do forró brasileiro e apresentar-se como cantor e ao mesmo tempo instrumentista virtuose, além de compositor e arranjador, o artista tornou-se reconhecido como um dos mais brilhantes da nova geração brasileira.

É um dos responsáveis pela revitalização da sanfona no cenário contemporâneo. Criou uma linguagem jovem e cosmopolita para o tradicional timbre sertanejo, harmonizando-o com distorções de guitarra elétrica, rock n’ roll, jazz e até drum and bass. Requintado e moderno, sem, contudo, perder de vista o legado brasileiro, o artista resgatou o antigo elo do instrumento de fole com o choro, samba, pagode, valsa e salsa, entre outros. “Com a sanfona eu me sinto cidadão do mundo”, sintetiza.

Pianista de formação clássica, aliou a técnica apurada herdada dos pais à aprendizagem autodidata do acordeão, o que o livrou dos “academicismos”, como ele mesmo diz, e abriu portas para um manancial até então desconhecido. Nomes como Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos passaram a figurar em seu repertório, ao lado de Bach, Liszt e Villa-Lobos.

“Minha obra é resultado desse ‘cozido’ musical delicioso do qual faço parte”, explica Marcelo. “O compromisso é com a música e não com este ou aquele estilo. Por isso me sinto à vontade para tocar um baião no piano e um Beethoven na sanfona nordestina”, completa.

A amplitude do seu trabalho tem relação direta com a visão que o artista tem da música, que “pode ser ao mesmo tempo religião e festa, alegria e tristeza”. “Ela está ligada a todas as relações e emoções que eu tenho. É a plenitude do meu sentimento, o canal direto do meu coração para o mundo exterior. É tudo o que eu vivo. É o meu sustento. Alimenta meu corpo e minha alma”.

Veia autoral

A veia autoral de Marcelo Caldi se revela em quatro discos solo. O mais recente é “Cantado” (MP,B, 2009), em que se apresenta pela primeira vez como cantor solista, resultado de anos de participação em grupos vocais, com destaque para o BR6 – considerado uma das melhores formações de jazz à capela do mundo, conforme o Contemporary A Cappella Recording Award, uma espécie de Grammy da música vocal.

“Eu demorei muito para me considerar cantor. Mas sempre cantei. Eu queria ser o Chico Buarque uma época, com 12 ou 13 anos”, brinca o músico. É curioso que, num país de grandes cantoras intérpretes, Marcelo tenha se inspirado justamente em um cantor que, não raramente, foi criticado pela escassez de recursos vocais. A identidade com o Chico, por outro lado, tem a ver com o compositor que entoa suas próprias canções, numa dicção perfeita e um timbre suave e límpido, criando uma atmosfera de intimidade com o público. É isso o que o ouvinte pode esperar em “Cantado”.

A concepção do CD, bem como todas as composições e arranjos, levam a assinatura de Marcelo Caldi. Destaque para a participação de Elza Soares em “Guerra é Guerra” (letra de Sérgio Ricardo) e para a parceria de Edu Krieger em “Nem Parecia”, uma sátira ao discurso catastrofista que invade as mídias: “depois que o planeta explodir / a gente prepara um sushi / desliga a tevê / cansados de ver / que o mundo acabou / me abraça e vamos dormir”.

“Cantado” mostra um universo urbano de angústia e solidão: “é a própria cidade que invade num trote cada sonho seu” (“Ser Cidade”, parceria com João Cavalcanti). Ao mesmo tempo manifesta o sonho quixotesco de correr livremente “sem destino e sem rumo (...) / porque é só de amor que eu tenho precisão” (“O Sanfoneiro”, com Sérgio Ricardo). Apresenta dramas amorosos não resolvidos (“Console”, com Vinícius Castro, “Espinheiras”, com Hermínio Bello de Carvalho, e “Aprendiz”, com Tatiana Muniz) e até canções humorísticas (“Xote” e “Viagem Insólita”, letra e música de Marcelo).

Assim como em outros álbuns, uma das marcas de “Cantado” é a presença de tangos e baiões. A influência do ritmo argentino é herdada da mãe, a pianista portenha Estela Caldi, de quem aprendeu praticamente tudo o que sabe de piano. “A linguagem musical que tenho dentro de mim foi ela quem me deu”, conta.

Entre o tango e o baião

Conforme o músico, os ritmos são mais parecidos do que se imagina. Afinal, ambos têm origem africana e se expressam principalmente através dos instrumentos de fole – o bandoneão na Argentina e a sanfona no Brasil – que se assemelham em timbre, intensidade e dificuldade técnica.

A penetração do tango na música brasileira remonta ao início do século XX e tem como expoente o gênio Ernesto Nazareth, de quem Marcelo Caldi gravou a emblemática “Batuque”, criada em 1901. A peça está em “Forró e Choro Vol. 1” (Delira, 2008), o disco de maior sucesso do artista, indicado ao Prêmio de Música Brasileira 2009 e facilmente encontrado na internet, em sites e blogs de aficcionados, no Brasil, Estados Unidos e Japão.

A releitura de “Batuque”, depois de mais de cem anos de composta, demonstra não somente a vitalidade da obra de Nazareth como também a ousadia de Marcelo Caldi em propor uma versão “abaiãosada” ou “nordestinada” do tango, aproximando culturas secularmente segregadas. “Esse é o caminho da música moderna. É mais do que nunca uma união de povos e de classes, de tudo o que é possível unir”, defende. Nesse álbum está presente o maior sucesso do artista, o forró “Lembrei do Ceará”, que conquistou diversas plateias no país, e o choro “Atravessado”.

Feito em parceria com o multi-instrumentista Fábio Luna, “Forró e Choro” é uma celebração da grandiosidade da música brasileira. O disco sintetiza um século de história, desde o “Batuque” de Nazareth, passando por Pixinguinha (“Ainda me Recordo”), Jacob do Bandolim (“Migalhas de Amor”), Radamés Gnatalli (“Remexendo”), Paulinho da Viola (“Sarau para Radamés”), entre outros, e culmina na investida autoral de Marcelo e Fábio, que compôs “Dudu e Didi no Forrozim de Caraíva” e “Luiza, Clara e Karina”.

Já o CD “Nesse Tempo” (Delira, 2006) é o reflexo das composições no início da carreira. Com este álbum, foi apontado pela imprensa como um artista que “escancara fronteiras” (João Pimentel) e um “compositor inspiradíssimo” (Maria Luiza Kfouri). O destaque vai para a homenagem a Piazzolla no tango “Fuga de Buenos Aires”.

O primeiro disco, por sua vez, traz o sugestivo nome “Intrometidos” (Independente, 2003), em parceria com o irmão e saxofonista Alexandre Caldi. A veia do compositor já aparece em “Intrometido”, “Xote”, “Nesse Tempo”, “Choro Seco” e “Paradiso”.

Participações

Em doze anos de carreira, Marcelo Caldi participou de shows e gravações ao lado dos maiores nomes da música como Chico Buarque, Elza Soares, Simone, Zeca Pagodinho, Geraldo Azevedo, Mart’nália, Zélia Duncan, Wando, Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Léo Gandelman, entre muitos outros, de inumerável lista.

Em meio a tantos convites, o músico se mantém fiel à própria carreira. “Ser intérprete de mim mesmo, assumir a própria identidade, esse é o caminho mais difícil, mas é o que eu escolhi, porque sempre fui de ir ao encontro dos desafios”, afirma. “Eu componho porque é mais forte do que eu. E se sou compositor, preciso fazer ecoar minha criação. Aprendi que eu preciso mostrar o que vim fazer neste mundo”, conclui.

Quanto ao seu constante bom humor, o artista tem uma explicação: “quem de fato ama a música é mais feliz”. Em sua melhor fase da carreira, Marcelo Caldi deixou de ser mais uma das promessas da nova geração, e se tornou, enfim, uma realidade, que veio para ficar.