quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Acrobacias para Manoel

Fotos: Renato Mangolin

A poesia está, entre outras coisas, no brincar com as palavras, nos ensinou o mestre Manoel de Barros. Uma vez que as palavras são refletidas e pronunciadas pelos seres humanos, deduzimos: os corpos, os agentes emanadores do verbo, também necessitam de brincar, para, assim, se transformar em poesia.

O novo espetáculo do Grupo Monjuá, “Sapo com Asas de Barro”, traduz em movimentos, jogos, acrobacias, danças e muitas brincadeiras o impacto que os versos de Manoel podem gerar nos corpos humanos.

A matéria humana se converte em sapos, vagalumes, aranhas, cobras, minhocas, ventos, água, argila, fogo, pedra, Sol, Lua... numa sequência sinuosa de movimentos que se abstém das palavras para criar um uníssono corpo poético, e despertar poesia.

Lembremos que poesia vem do grego “poiesis”, derivado do verbo “poiein”, que basicamente significa: “fazer”. Muito mais que um jogo articulado de palavras, a origem etimológica de “poesia” nos remete a um feito, a um acontecimento, a algo que pode ser efetivado na matéria a partir do verbo.

Nesse espetáculo, a poesia se faz, vai se fazendo, em cena, ao vivo, a cada precioso pequeno momento, a cada detalhe de cada passo, ou pulo, ou salto, dos quatro intérpretes no palco, sorrateiramente nos conduzindo ao inefável, àquele silenciamento involuntário diante do fascínio.

Curiosamente, por ser uma livre adaptação inspirada na obra de Manoel de Barros, o espetáculo não faz citação literal de nenhum texto do poeta. Os diálogos e a narrativa são curtos, pontuais e contundentes, escritos por Fábio Freitas e Ana Luiza Gonçalves.

Sobra espaço para o imagético, construído a partir das performances dos intérpretes Ana Luiza Gonçalves, Fernando Nicolini, Guilherme Gomes,

Helena Heyzer e Bárbara Abi-Rihan, com a direção de movimento de Lavínia Bizotto. Assim como em um poema, ou, talvez, como na vida, não há, exatamente, um início, um meio ou um fim, mas sim um contínuo acontecer ao longo da peça.

A trilha sonora original, de Beto Lemos, oferece um sabor à parte, ao evocar como que um espaço fora do tempo, na medida em que se relaciona aos timbres e melodias dos sertões profundos de nosso país. 

Padroeiro

Para o diretor Fábio Freitas, o poeta Manoel de Barros é aquele velho que não deixou sua criança envelhecer. Por criar esse modo de transver o mundo, de olhar pelo avesso, Freitas o considera, não sem razão, como uma espécie de poeta padroeiro dos palhaços e do circo.

O célebre autor de “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar” nos ensina, ainda, que a poesia está em direcionar o nosso olhar para aquilo que não é comumente visto, para o que tende a ser preterido ou menosprezado. Em suas palavras, “tudo aquilo que a nossa civilização rejeita pisa e mija em cima serve para poesia”.

Em “Sapo com Asas de Barro”, esse lugar abandonado é o fundo do quintal de uma longínqua casa do interior, um cenário cheio de árvores e bichos estranhos, como a onça pintada de arco-íris, a preguiça espreguiçadeira, a aranha abelhuda, o tatuiuiú, o tamandoende e o crocochorro. De farta natureza, esse quintal é uma síntese do universo, de possibilidades múltiplas de brincadeira, um campo-base para o chão e para o espaço sideral.    

Utilizando como principal brinquedo uma engenhoca que nos lembra um trepa-trepa, desses comuns em parques infantis, só que de cabeça para baixo, e que também vira de lado, e balança, para cima e para baixo, e vira Lua, e vira Sol, e vira vento, criado exclusivamente para o espetáculo, os intérpretes em cena brincam de brincar, e dão gritos e urros, fazem acrobacias de tirar o fôlego, nos dão aquele frio na barriga.

Terminam por fazer uma massagem em nossos corações, ao transbordar uma alegria lúdica, aludindo a um encantamento de mundo, tão característico das infâncias, e que insiste em perseverar, como uma resistência frente às agruras de uma sociedade opressora e ambientalmente perplexa.

A certa altura do espetáculo, diante de um latafone, uma espécie de telefone feito de latas de leite em pó, um personagem indaga: “será que ele faz ligação de longa distância?” Ao que outro personagem retruca: “com quem você quer falar, que tá tão longe?” A resposta: “comigo mesmo! Lá no futuro. Quando eu for assim bem velhinho”.

“E o que você quer falar pra você velhinho?”, outro personagem pergunta. A resposta só pode ser conferida ao vivo.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025



Se acreditamos que “tudo é relativo”, precisamos, então, compreender: a própria sentença “tudo é relativo” é, também, passível de ser relativizada. Ou seja, nem tudo é relativo.


Do mesmo modo, temos o ditado “nunca diga nunca”. Ora, se nunca pudermos dizer nunca, jamais poderíamos afirmar “nunca diga nunca”.


Tantos outros exemplos nos sugerem os limites da linguagem verbal, em seu intuito de descrever as percepções do ser humano quanto à essa louca experiência chamada “realidade”.


Como tradução mais palpável de nossa mente, a linguagem, na medida em que se aproxima do horizonte dos inexplicáveis da vida, começa a dar tilt... como se não pudesse, enfim, dar conta desse “além”, que tanto nos fascina e atormenta.


Daí, a poesia: esse afã de dizer o indizível, de nomear o inominável, de distorcer as palavras, ansiando transmitir algo que, por sua própria condição, parece nos soar intransmissível.


E, quando nos deparamos, na hora certa e no momento certo, com um poema que nos aclara, com uma música que nos elucida, com uma imagem que nos revela, alcançamos um estado tão excitante e incomum que... silenciamos. A arte se expressa a uma profundidade que nos cala.


A estesia diante de algo belo e tocante nos faz ficar quietos como um susto, nem que seja por um instante, um pico de silêncio em meio aos barulhosos deveres do cotidiano.


Desse silêncio, mesmo que raro, muito se decifra. Me faz lembrar os famosos versos do poeta místico Rumi: “o silêncio é a linguagem de Deus, todo o resto é má tradução”.


#poesia #silêncio #linguagem #arte #rumi

quinta-feira, 15 de agosto de 2024



A máxima “penso, logo existo” remonta ao século XVII, na Europa, e inaugura o racionalismo no pensamento ocidental. Seu autor, Descartes, é considerado o pai da filosofia moderna, na qual a razão analítica se sobrepõe aos sentimentos e à subjetividade na busca pelo conhecimento. 


Em nossa cultura, o “penso, logo existo” criou um vínculo quase que inquestionável entre o pensamento e a existência, a ponto de gerar uma identidade completa entre o nosso ser com aquilo que se é pensado.


Exemplo trivial: penso em algo triste, me identifico com aquele pensamento e passo a me sentir triste, e viro praticamente a própria tristeza. Mas daí passa, e me vem um pensamento de algo alegre, e aí me identifico com a alegria, sinto a alegria, vivo a alegria, sou a alegria. Mais adiante, penso em algo que me dá medo, e assim vai...


Ocorre que nossa mente, a depositária de todos os pensamentos, digamos assim, está sempre pensando em algo, e pulando de galho em galho. Já até foi contabilizado quantos pensamentos um ser humano pode ter em um dia. Cientistas da Queen’s University, Canadá, publicaram um estudo na revista científica “Nature Communications” em 2020, elencando cerca de 6,2 mil pensamentos diários. Mas pode-se encontrar na internet gente falando em até 70 mil!


Você pode observar no seu dia-a-dia os pensamentos que te deixam melancólico ou pessimista ou os pensamentos que lhe despertam esperança e motivação. Claro, cada um de nós tem certas tendências de caminhar por esta ou aquela trilha do pensar. Mas, observe...


Na medida em que observamos o fluxo interminável de pensamentos, vamos, aos poucos, descontruindo essa cruel identidade com tudo o que se passa pela nossa cabeça, gerando sofrimento e tormenta contínuos (quanto mais nos emocionamos com os pensamentos, maior a identidade com eles).


Observe... você não é, apenas, o que você pensa; você é, também, o ser que observa os seus pensamentos. Reiterando: você não é a sua mente, você é o ser que observa a sua mente. 


E, na medida em que observamos, vamos nos distanciando do pensar e nos identificando com este ser (a consciência) que observa.


Mas... quem é este ser que observa? Quem está por trás dessa máquina misteriosa de pensamentos? Quem sou eu, afinal? 


É uma boa pergunta, da qual costumamos fugir. Aventure-se a questionar: quem sou eu?, e observe o sentimento que lhe desperta logo após a indagação. Me conta!


Indícios de uma possível resposta: se você não é a mente, se você não é este ser que pensa, então, você é algo que está além da linguagem. Pois a linguagem é o atributo típico da mente, é a sua forma plena de expressão, resultado de suas vivências pessoais, na relação com o contexto histórico, social, político, cultural, psíquico, familiar, territorial, linguístico, genético etc. etc. em que está inserido. Mas, se você não é nada disso, então, quem é você?


Numa grosseira síntese: você é algo que a linguagem humana, tal como a concebemos, não pode expressar. 


É muito provável que a resposta a essa pergunta possa ser vislumbrada, somente, no silêncio.


O silêncio é a expressão mais verdadeira de sua consciência. 


Medite.


#meditação #filofosia #mente #pensamento #descartes #pensologoexisto #filosofiamoderna


domingo, 24 de março de 2024

São José do Calçado

A Ivny Matos


Olhar esse invisível,

nomear esse inominável 

explicar esse inexplicável

é o nosso mais inútil trabalho.


O movimento nos mantém estáticos, 

em êxtase de tudo e nada,

à espera e à procura

do grande silêncio que nos fala.