segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O sol se escondeu atrás da pedra.

A sombra invadiu a areia da praia sem que, aparentemente, ninguém a percebesse.

Ao longo do braço de mar se dividiam num curto espaço turistas, vendedores os mais diversos, policiais, moradores locais e distantes, ricos e pobres, feios e bonitos, crianças e velhos, pequenos ladrões, traficantes, atletas, gente, gente...

Agora começa a se esvaziar.

Vago, impreciso, duro e certeiro... chegou o fim do dia. É domingo.

Caminhando no furdunço daquela gente, movendo-se entre a areia fofa e os pensamentos duros, Fernando tentava ainda catar qualquer fiasco de luz, pra se alongar e aquecer o corpo.

Quase todos os dias era assim. Seguia entre Copacabana e Ipanema, murmurando, murmurando... e, quando se dava conta, era noite...  (é repentino e ancestral esse vento que agora sobe frio pelas pernas, num tesão, num refrigério).

As caminhadas lhe deixavam um pouco mais calmo. Sabia que deveria estar mais satisfeito consigo mesmo, embora há anos estivesse chafurdado na lama dos mesmos defeitos, entre a ansiedade e a preguiça e os excessos do sedentarismo e da maconha. Mas... caminhava. E a caminhada se vislumbrava assim como uma resposta, uma oração, um modo particular de amar-se.

Acotovelando-se entre pessoas do mundo inteiro naquele parco pedaço de praia, ali destilava o ódio que sentia pelos seres humanos, o seu torto caráter... um ódio cristalino, como uma pedra de cristal luminoso, de mil pontas, ferindo por todos os lados. Quantas mágoas e ressentimentos e raivas e vinganças poderiam caber em um coração. Não, não poderia ser somente seu aquele ódio...

Ao mesmo tempo, logo mais, regenerava-se em calor com alguma compaixão, saudades que não queria mais sentir, memórias que iam e vinham, no sabor de alguma cantiga ou verso murmurado, ao lado das ondas do mar, imunes à falação urbana.

A vida é mais alegre que qualquer livro. A água que bate fresca nos pés, o ventinho que sopra, essa eterna tarde-noite testemunham.

Fernando era um desconfiado. Desconfiava daquelas pessoas que vivem enfurnadas em casa ou nas livrarias, lendo, lendo... esse “tipo livresco”, como costumava acusar (roubando o termo de Jorge Luis Borges, ou outro).

Curiosamente, nada poderia ser mais adequado à cara de Fernando do que... um tipo livresco. Nos anos de colégio, a tentativa de deixar o cabelo crescer lhe rendeu o tão apropriado apelido "cabeça de livro", por conta das "páginas" das madeixas duras e mal lavadas.

Ao contrário do que se pudesse supor, Fernando pouco lera na vida, embora mantivesse até hoje o hábito de comprar em sebos e furtar em lojas. De uns dias pra cá, começou a se envergonhar dos pequenos mal feitos, após ter se tornado amigo de um dos donos da livraria mais tradicional do centro da cidade.

Lendo pouco e folheando muito, tornou-se jornalista. O cotidiano de repórter de política terminou por deixá-lo cada dia mais burro. "Essa profissão emburrece, meu filho", lhe dizia o editor, com absurda sinceridade, ele próprio um ex-letrado, advindo de seminário, conhecedor de grego e latim, há décadas enfurnado naquela redação. O espírito pseudo-crítico de Fernando fatalmente o levaria à academia, na qual vislumbrou que pudesse exercer alguma liberdade de pensamento, num local em que a tônica velada é a disputa por bolsas de estudo, salários e concursos.

E tudo isso, e tudo o mais, atravessavam as páginas daquele jovem adulto, de trinta e poucos anos, naquelas longas tardes de sol e praia e gente, muita gente, todos os dias... menos nos dias nublados, quando, sim, era possível algum silêncio junto ao mar.

Passava os dias avesso a qualquer nova leitura, ruminando coisas que já lera, poemas de Fernando Pessoa, alguns trechos da bíblia... Não dormia direito, e lembrava das recomendações de Blavatsky e Sêneca, que aconselhavam um tempo equânime para as três fases do contato com o livro: a leitura, a meditação e a posterior escrita em torno do assunto.

"Já li demais, só me resta agora escrever o meu best-seller", costumava dizer para si mesmo, sulcando um desejo que aos poucos se tornaria uma obsessão. No para si mesmo, haveria de ser claro quanto à sua ambição desmedida, às suas pretensões ridículas... e depois filtrá-las no desejo de um personagem. Ah... a literatura...

Enquanto nada está pronto, nenhuma linha escrita, mais fácil ainda é sonhar. Como um quadro prometido por um amigo, que nunca ocupou a parede, o espaço em branco está lá, e pode ser o que se imaginar. Uma criança é tudo o que temos de expectativa... esse nada que gera as formas, essa invisível matéria de que somos formados...

O sonho existe, em algum modo, nos dá existência, nos direciona. Quanto à labuta, ao exercício, à realização... é que são elas. Fernando sabia que não seria nada fácil empreender um best-seller, mas intuía alguns caminhos, ensaiou romances baratos, textos de autoajuda, pornografias variadas. Porém, num mundo mercadologizado como o nosso, de nada bastaria um conteúdo incrível sem network ou uma grande editora, com distribuição nacional, investimento em assessoria de imprensa e em redes sociais, agentes literários... aí, sim, era desanimador. Quando pensava no profissionalismo da coisa, sucumbia.

Devia ser sincero consigo mesmo. Por mais palpável que pareça na mente do lunático um sonho, o princípio da razoabilidade de todo não se afastava dos anseios de Fernando, que logo arrumava mil argumentos para o fracasso do empreendimento sequer começado. Refém das tais paixões tristes às quais Espinoza (ou outro) escreveu, Fernando se consolava, pois, afinal, bastava-lhe a “limpeza mental” que os exercícios cotidianos de narrar a vida em diários lhe trouxera. Bastava que dividisse com um amigo um poema e o mistério de viver entre palavras. E depois, um livro, em exato, é um objeto entre outros, não um acontecimento estético em si, não uma revelação por si só, mas, antes, um livro é um corpo que empoeira e se consome no tempo.

Pois nessa de ser sincero consigo mesmo, lhe era inegável, por outro lado, o desejo de ser consumido pelo público no mundo inteiro, de lotar maracanãs, de falar para gigantescas audiências. Não, Fernando não poderia esconder isso de si. Queria o povão, em sua desmesurada utopia, queria ser mastigado mais que Jorge Amado, mais que Paulo Coelho, que seja... Fernando era um personagem, e não tinha nada a temer.

O segredo está no livro. E a saúde mental de seus pais de fato começou a mudar com a chegada em casa de um manual do padre Lauro Trevizan, chamado "O infinito poder de sua mente". As páginas desse best-seller fizeram a diferença e trouxeram àquela família, pela primeira vez, um conforto espiritual mais verdadeiro. O livro trazia um pouco disso que é... a magia entre a palavra, o desejo, o sonho e o real, as conexões entre a consciência, a linguagem e os acontecimentos. "Taí um bom livro para reler, quem sabe", relembrava Fernando.

"Escrevo para curar as pessoas", rascunhava. Desde que bem empregadas, bem articuladas, as palavras seguem naturalmente o caminho da cura... disso Fernando estava absolutamente convencido. A confusão do mundo é uma confusão de linguagem. Conhece-te a ti mesmo... compreender a si mesmo empreende um exercício de linguagem.

Da narrativa do gênesis às parábolas do Cristo; passando pela filosofia oriental; pela sutil história de Clarice, que contava histórias para a mãe na esperança de reanimá-la; e ainda pelas fartas pesquisas neurolinguísticas, pseudocientíficas... não, não, o mundo não precisaria de mais um livro enumerando os poderes da cura pela palavra, tão óbvio isso já demasiadamente soa... mas, em torno de quê escrever, então?

Por que tomar sua atenção por mais de um minuto se eu não tenho nada a fazer diferença na sua vida?... Não convém lhe distrair, lhe entreter... Derrubar árvores, fazer papel, gastar dinheiro, investir o tempo de uma vida em escrever um livro, disputar leitores já tão fartos de informação... para quê?

Fernando pensava, murmurava, gesticulava excessivamente com as mãos e falava sozinho enquanto estava junto ao mar... discorria, como um vício, como um fluxo, como uma caganeira... e ansiava gritar suas verdades ao mundo... mas o quê, exatamente? Que podemos restabelecer o paraíso aqui na terra, que podemos gozar a plenitude da paz e do amor no aqui-agora! Que as promessas da eternidade são reais, que a imortalidade é um portal de fogo a ser atravessado pela consciência da unidade cósmica... era demais! Fernando lia e se relia, e custava a acreditar-se. Sua autocrítica, apesar de ferina, era certeira: ele próprio carecia de experimentar esse tal fogo, essa tal verdade última, essa tal palavra regeneradora.

Enquanto sonhava, caminhava, em algum momento sendo tomado por memórias da meninice... tanta coisa e quase nada, os rostos de garotos de outrora ganhavam as feições das pessoas as quais cruzava na praia.

5 comentários:

Anne Ventura disse...

Que fazer faremos da palavra, Fernando? Sigo seus passos.

gasparinando disse...

sigamos juntos!

Edmilson Borret disse...

Gostei bastante da sua narrativa, Fernando. Cheguei aqui a partir do seu comentário numa postagem do Tornaghi. Lancei recentemente meu livro de poemas e estive lá no Pelada Poética para fazer uma divulgação.
A propósito, convido vc a dar uma olhada em meu blog tb. Nele publico muito pouco de poesia. Foi um blog que criei para publicar prosa, que considero bem mais difícil que e poesia.

https://itinerariododesuso.blogspot.com/

Abraços.

gasparinando disse...

Muito obrigado pela sua presença e pelo seu comentário, amigo! Nos encontramos na Pelada Poética!

Kavyla disse...

Este texto é um revira-mundo ao mesmo tempo que o mundo revira em nós! rs. Sinto como se eu - o personagem - fosse construindo uma crônica sobre suas ambições caminhando, e a crônica criasse peso e virasse conto - e o conto pudesse virar livro. Como uma auto-biografia sentimental, da infância, dos meninos...foque vale a pena ou não? Do que realmente importa dar a alguém. Gostei muito. Além de você Fer : ser meu amigo do peito. Bjos