terça-feira, 21 de julho de 2009

Fragmentos de um Hospital

I

Pintura: Gian Paolo Doth

À primeira vista, imaginei que já estivesse morto – pela forma como os enfermeiros, ágeis e firmes, pegaram na maca, retirando da ambulância o senhor bem velho e alto, a pele bege, fria e flácida, o corpo cheio de fios e coberto por uma capa verde clara, de certa transparência; e, próximo à barriga, uma máquina com vários botões, que aparentou ser bem pesada, formato retangular, à espessura e tamanho de um livro grosso, antigo, de capa preta.


Uma das enfermeiras cobriu com a capa verde um pedacinho da barriga que aparecia ao vento, noite fria, e, alguns segundos depois, os olhos do homem, fechados como os de um defunto, se abriram, claros, castanhos, reais.

Uma gota despontou na clara água, a lágrima escorreu na dor da face, e os enfermeiros.... os enfermeiros sorriram, brincaram: - tá chorando meu amor, tudo está bem, tudo vai ficar bem; o velho homem era uma criança, e o seu rosto levemente amenizou. E ele sorriu.



II


Pintura: Gian Paolo Doth


Era a única bebê no atendimento da emergência, entre quase uma centena de adultos a tossir e a assistir a novela, fechados dentro de uma enorme sala branca, sem quadros ou flores, com ar-condicionado ligado, e uma parede de espelhos a cobrir uma das laterais, de forma que todos poderiam ver a si mesmos.

Um pouco magrinha sim, mas com os olhinhos grandes, estendia os bracinhos e mãozinhas para pegar no cartão do plano de saúde, este segurado firme pela mãe, com a bebê no colo e os olhos atentos às informações constantes naquele estranho objeto.

Após checar os dados algumas repetidas vezes, a mãe enfim levantou a cabeça e olhou séria para frente, como a esperar, como a vaguear num pálido transtorno. O cartão do plano permanecia firme em suas mãos – gesto estático – como se estivesse pronto para ser visto e revisto a qualquer momento, lá estava ele, quase ao alcance das mãozinhas da bebê, cada vez mais instigada em descobrir a coisa.

A mãe abaixa a cabeça em direção a da filha, mexe um carinho em seus cabelos e, olhos fechados, murmura qualquer coisa de indescritível. A criança, a todo tempo em silêncio, agora mexia os bracinhos e perninhas para agarrar o cartão. Um dos dedinhos chegou a tocá-lo.

É quando a mãe se volta para conversar com alguém, ao mesmo tempo em que, instantaneamente, esconde o brinquedo na bolsa. De súbito, a bebê levantou a cabeça e olhou séria para frente, como a esperar, como a vaguear num pálido transtorno.

2 comentários:

Andréia Delmaschio disse...

E repito... tem muita força essa escrita. É uma grande estréia na prosa. Poética. Abraço. A.

Mayra Lopes disse...

A doença fragiliza e faz o indivíduo retornar a época feliz da vida para suportar o presente, daí o fato do homem ser uma criança.
O sorriso existe não somente devido às palavras de consolo, mas devido ao fato de: "Tudo está bem". No momento do atendimento o indivíduo está livre da condição humana mais dolorosa: a solidão. Logo, "tudo está bem".
Gostei!!!